
Não estou de acordo com a abordagem feita no texto de José Dirceu sobre o nacionalismo (ver tal texto ao final, em vermelho).
Obviamente concordo em criticar o “nacionalismo” das elites.
Assim como concordo em criticar o “globalismo”, que na verdade expressa os interesses do nacionalismo das grandes potências.
Onde divirjo?
Acho um erro contrapor, ao “globalismo” e ao “nacionalismo” das elites, um nacionalismo “genérico”.
Mais adiante explicarei porque considero “genérico” o nacionalismo defendido por Dirceu.
Mas antecipo que não é por acaso que ele termina dando como exemplos o Curdistão, a Catalunha, a Escócia.
Casos profundamente distintos do tipo de “nacionalismo” que precisamos ter no Brasil.
Dirceu afirma que “no fundo, o substrato de toda a fundamentação, há
décadas da avalanche da globalização, está no bordão do fim. Não da
história, mas do conceito de nação e de sua própria existência, pelo
menos como ente estatal, já que seria muita pretensão desconhecer as
nações”.
Não concordo com esta afirmação. Ela confunde um discurso proposto para exportação com a prática real.
A classe dominante dos EUA — para ficar nesse exemplo — nunca
enfraqueceu o seu Estado. Seu discurso criticava e propunha o
enfraquecimento dos estados e das nações ... dos concorrentes.
Portanto, o “substrato” real do discurso da globalização era a ampliação
ao limite máximo da hegemonia das nações capitalistas centrais.
Também não concordo com a afirmação de que nossas elites “nunca ... – a
não ser para usurpar o poder – conviveram ou aderiram ao nacionalismo”.
Primeiro, não faz sentido falar que nossas elites precisavam fazer algo para “usurpar o poder”.
Usurpar o poder de quem???? Elas nunca o perderam, porque deveriam usurpá-lo??
Segundo, é simplesmente falso — historicamente falando, factualmente
falando— que nossas elites nunca “conviveram ou aderiram” ao
nacionalismo.
A afirmação só faria sentido se por “nacionalismo” compreendêssemos apenas um nacionalismo popular.
Mas nosso tipo de nacionalismo não é o único que existe. Assim como nossa visão sobre democracia não é a única que existe.
É provável que Dirceu tenha querido dizer que o “nacionalismo”
hegemônico nas elites econômicas, culturais e políticas era e segue
sendo submisso ao interesse dos imperialismos; e, além disso, talvez
tenha querido dizer que o “nacionalismo” das elites não considerava nem
considera os interesses do conjunto do povo.
Qual a diferença?
Simples: na “fórmula” desenvolvida no parágrafo anterior a abordagem
deixa de ser “nacionalistas” versus “não nacionalistas”; a equação passa
a incluir imperialismo, capitalismo e luta de classes; e reconhece de
maneira adequada existirem diferenças no interior das elites.
Dirceu diz que as “elites” foram “sempre inimigas mortais dos governos
dito nacionalistas, seja Getúlio, JK, Jânio com sua política externa
independente, Jango e, pasmem, Geisel.”
Realmente, pasmem. Pois Getúlio, JK, Jânio, Jango e Geisel eram parte
das elites. E em determinado momento expressaram um setor politicamente
hegemônico nas elites.
Dizer que “as elites” eram “inimigas mortais” de todos estes, é não
apenas falso, como pode gerar a conclusão politicamente equivocada de
que inimigo de meu inimigo é meu amigo.
Dirceu está tão entusiasmado que chega a afirmar que “o sentimento
nacionalista” guia “nossa construção nacional, nossa aventura de
construir, nos trópicos, uma civilização”.
Perdão, mas não foi o “sentimento nacionalista” que “guiou” o
desenvolvimento da sociedade brasileira. E a “aventura” dos “homens de
grossa aventura” — a elite da época colonial— incluía tráfico de
escravos, destruição dos povos indígenas etc.
A defesa de um nacionalismo popular precisa “extrair sua poesia do
futuro”, não repetir má poesia ao estilo de “porque me ufano de meu
país”.
E o que diz Dirceu do futuro? Diz que precisamos impor, defender ou
construir “uma força política, econômica, cultural e militar, que também
molde e organize o poder mundial”.
E em seguida faz digressões sobre o pensamento militar.
Noutro texto pretendo comentar mais extensamente a opinião de Dirceu sobre a “questão militar”.
Mas de imediato acho incorreta a maneira como ele relaciona a vertente
do pensamento militar nacionalista com a criação da Petrobras,
Eletrobrás, Telebrás, BNDES etc.
Claro que havia diferentes vertentes entre os militares. Mas não havia
apenas entreguistas e nacionalistas. Havia esquerda, democratas e
fascistas. Portanto, havia fascistas & nacionalistas &
estatistas; assim como havia fascistas & entreguistas.
Simplificar, resumindo a equação a nacionalistas versus entreguistas, é o
que conduziu recentemente setores da esquerda nacionalista a cogitar a
existência de aspectos positivos numa eventual intervenção militar.
Além disso, é preciso identificar corretamente as diferentes conexões
existentes entre os militares, o empresariado capitalista nacional e
internacional, e os interesses do imperialismo.
Por exemplo: o fracasso do “projeto nacional autoritário e conservador”
dos militares ocorreu porque ele era “sem inclusão do povo”?? Ou porque
este “projeto” já não atendia aos interesses do capital??
As elites e seus projetos não fracassam ou vencem porque incluam ou não incluam o povo.
As elites “incluem” o povo através da opressão, da exploração, da dominação.
Os êxitos e fracassos das “elites” dependem de como se combinam, a cada
momento, a competição inter-capitalista e a resistência popular.
Por isso é falso dizer que “nenhuma política de crescimento econômico
numa nação continental como a nossa (...) terá sucesso se não se afirmar
como nacional e a partir dos interesses do povo e não apenas da elite
econômica e política”.
Pois “sucesso” para as elites pode significar e geralmente significa ir contra os interesses do povo.
Portanto, a questão é outra: uma política de desenvolvimento precisa ser
feita em benefício das elites ou em benefício da maioria do povo. E a
“perigosa ilusão” que sempre ameaça à esquerda brasileira é achar
possível construir um caminho baseado na conciliação de classe.
Deste ponto de vista, sigo aguardando de Dirceu uma autocrítica acerca
da estratégia que ele ajudou a construir. E que explica parte de nossa
derrota recente.
No lugar disso, neste texto Dirceu reitera uma das premissas da análise
de classes que está na base da estratégia adotada pelo PT a partir de
1995.
Refiro-me ao seguinte raciocínio: “grande parte da elite – inclusive a
industrial, na ânsia de retomar o controle total sobre o poder – se
submete ao capital financeiro e principalmente aos donos da informação e
da formação da notícia e da opinião pública.”
A verdade é outra. Eles não precisam retomar o pode: nunca o perderam. E
a hegemonia do capital financeiro instalou-se nos anos 1990. Portanto,
equivoca-se agora e equivocou-se antes quem enxergava uma postura
autônoma na “elite industrial”.
A questão portanto não está em que “não é possível – e nunca será –
fazer com que 200 milhões de brasileiros alcancem o bem-estar social e
cultural numa economia agro mineral exportadora, submetida às finanças
internacionais e aos interesses da banca mundial, tendo eles mesmos – a
nossa elite – como sócios menores”.
A questão é outra: estes 200 milhões não terão bem estar, nem poder
político, enquanto o Brasil for um país capitalista. E não haverá
“soberania” de tipo nacional- popular enquanto o Brasil for um país
capitalista.
Por isso não basta exaltar a “memória nacionalista”. Por isso é preciso
colocar o socialismo como alternativa. Por isso a Escócia, o Curdistão e
a Catalunha são parte de outro debate. E por isso nossa defesa da
soberania nacional precisa estar combinada com a defesa da integração
regional, tema que salvo engano não é mencionado no texto aqui
criticado.
Pós-escrito
Cinco comentários adicionais, feitos com base em opiniões que me foram dadas após a leitura do texto acima.
Primeiro: para usar um vocabulário antigo, o que estamos debatendo aqui
são as "tarefas". As tarefas definem de forma sintética aquilo que o
programa define de maneira detalhada.
Segundo: há um acordo em que as tarefas são três: democráticas,
nacionais e sociais. A polêmica está em como combinar as tarefas. Na
minha opinião e também na opinião de Dirceu, não dá para colocar em
segundo plano, nem dá para tratar superficialmente, as tarefas sociais. A
diferença está no seguinte: qual a radicalidade das tarefas sociais? Na
minha opinião, a radicalidade deve ser a maior possível, nas atuais
condições históricas. A saber: colocar sob controle estatal, público,
social, o pólo dinâmico da economia. Por exemplo: o setor financeiro. O
nome disto? Socialismo.
Terceiro: por qual motivo é assim? Pelo mesmo motivo que Cuba, Vietnã,
China e Rússia precisaram do socialismo para conseguir níveis de
soberania, democracia e bem-estar social que em outros países foram
compatíveis com o capitalismo. A saber: o nosso lugar no capitalismo
mundial. Lugar que, na literatura especializada, recebeu vários nomes:
dependente, tardio, subalterno, periférico etc.
Quarto: a definição das tarefas/programa se articula com outra
discussão, a da estratégia. Ou seja, como construir/conquistar o poder
necessário para implementar o programa. Acerca disso, o texto de Dirceu
não fala --nem precisaria obrigatoriamente falar, já que seu artigo
versa sobre o nacionalismo -- exceto de maneira indireta, na passagem
que critico acerca das classes sociais; e exceto, também, por seu
silêncio acerca da integração regional.
Quinto: o tema da integração é onde a abordagem "genérica" sobre o
nacionalismo revela sua debilidade. Pois a chance de viabilizar a
soberania nacional, o bem estar social e a democratização profunda de um
país como o Brasil exige um programa (e uma estratégia) de integração
regional.
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Segue o texto do Dirceu:
Estaria o nacionalismo condenado e viveríamos
um mundo sem fronteiras nacionais, regido pela globalização, pela
abertura dos mercados – principalmente financeiros – a caminho de um
governo mundial?
Pode parecer piada de mau gosto, mas, no
fundo, o substrato de toda a fundamentação, há décadas da avalanche da
globalização, está no bordão do fim. Não da história, mas do conceito de
nação e de sua própria existência, pelo menos como ente estatal, já que
seria muita pretensão desconhecer as nações. Seria como se voltássemos e
regredíssemos à Idade Média.
No nosso caso, nunca nossas elites – a não ser
para usurpar o poder – conviveram ou aderiram ao nacionalismo. E, muito
menos, à nação. Só o fazem para exercer ou tentar a hegemonia cultural,
impondo sua visão do que seja a nação, sempre a partir de seus
interesses e visão do mundo. Sempre foram inimigas mortais dos governos
dito nacionalistas, seja Getúlio, JK, Jânio com sua política externa
independente, Jango e, pasmem, Geisel.
Mas nunca conseguiram apagar da memória
nacional o sentimento nacionalista, que guia nossa construção nacional,
nossa aventura de construir, nos trópicos, uma civilização.
Fizeram de tudo, até mesmo negar que tínhamos
condições históricas, humanas e culturais de nos tornarmos uma nação.
Foi com muita luta política, social e cultural que, década após década,
construímos o sentimento que hoje, de novo, se impôs como um fato
histórico indiscutível e indestrutível: somos uma nação soberana e
independente, somos uma cultura, um povo com presença no mundo. Somos
assim reconhecidos.
Mas não basta. Uma nação só se caracteriza
quando impõe, defende ou constrói poderes para defender seus interesses e
fazer parte do mundo, não apenas como membro do concerto das nações,
mas como uma força política, econômica, cultural e militar, que também
molda e organiza o poder mundial.
O pensamento militar nunca foi único ou
consolidado na nossa história. Pelo contrário, até 64 debatia-se entre
visões entreguistas e nacionalistas. Sob a ótica entreguista, vamos
recordar que, durante quase meio século, nossas elites rurais e seus
porta-vozes na imprensa e na política defendiam que o Brasil jamais se
industrializaria e não seria uma potência. Estávamos “destinados” a ser
um país agrário-exportador, cópia cultural da Europa. Hoje, cópia dos
Estados Unidos e igualmente exportador – de minerais, energia,
alimentos. Nada muito diferente do passado.
A vertente nacionalista nos deu condições para
a criação da Petrobras, Eletrobrás, Telebrás, BNDES, que são as bases
do Brasil que existe hoje.
Não foi por nada, ou apenas por Geisel, que o
estamento militar e interesses empresariais construíram o II Plano
Nacional de Desenvolvimento, que consolidou nossa indústria de base, a
ciência e a tecnologia – temas indispensáveis para se falar em
desenvolvimento nacional. Era um imperativo, inclusive, para a
sobrevivência da ditadura militar e de seu projeto nacional autoritário e
conservador. Sem inclusão do povo e, por isso, fracassado.
Sem o povo não há nação e sem a nação não há
Brasil e sua presença no mundo. Nenhuma política de crescimento
econômico numa nação continental como a nossa, com mais de duzentos
milhões de habitantes, com os recursos e as riquezas naturais que temos e
nosso nível de desenvolvimento tecnológico, terá sucesso se não se
afirmar como nacional e a partir dos interesses do povo e não apenas da
elite econômica e política.
O povo trabalhador se constitui em sujeito,
ator da história do país e isso acontece de formas e maneiras totalmente
diversas, personificando seus interesses e sonhos em ideias, forças,
lideranças, partidos, movimentos, revoltas ou rebeliões. É por isso que
se trata de uma perigosa ilusão qualquer tentativa de fazer uma nação
sem o povo. Não há caminho para construir poderes nacionais, sejam eles
políticos, econômicos, culturais ou militares, sem o povo.
Mesmo uma força militar, sem o apoio popular,
não tem sobrevida estratégica no longo prazo. Acaba desaguando em algum
conflito militar, como a história nos ensina.
Apesar de todas as evidências do caminho
errado, voltamos ao passado e, mais uma vez, querem porque querem
descontinuar a nação. Sob o silêncio cúmplice ou imposto, os militares
se calam, como manda a Constituição.
Grande parte da elite – inclusive a
industrial, na ânsia de retomar o controle total sobre o poder – se
submete ao capital financeiro e principalmente aos donos da informação e
da formação da notícia e da opinião pública.
Os usurpadores do poder usam e abusam do poder
judicial/policial, rasgam o pacto político e social de 1988 e voltam a
pregar abertamente a entrega do país a preços vis ao capital
internacional, cujas premissas de atuação foram extremamente nocivas a
muitos países, como mostra a última crise global de 2008-2009.
Para eles, o Brasil não tem saída a não ser se
integrar no mundo norte-americano, sob sua hegemonia – inclusive a
cultural. Não bastasse a já nefasta dominação que exercem sobre o país
via monopólio da informação, agora tentam partidarizar a educação com
suas ideias e conceitos sobre a vida e a nação.
Irresponsáveis e ignorantes das lições da
história, acreditam que podem, a partir da força e do controle da
informação, dominar o povo brasileiro, seu destino e futuro como nação.
Não cabe em seu projeto de poder e de país um povo como o brasileiro.
Estão profundamente enganados. Tal pensamento e
desejo são uma vã ilusão, que logo lhes custará caro. Porque não é
possível – e nunca será – fazer com que 200 milhões de brasileiros
alcancem o bem-estar social e cultural numa economia agro mineral
exportadora, submetida às finanças internacionais e aos interesses da
banca mundial, tendo eles mesmos – a nossa elite – como sócios menores.
A minoria rica – menos de 1% da população – e
os 10% dos que participam de seu banquete acreditam que podem iludir o
povo brasileiro e sua classe trabalhadora.
Nada aprenderam com a história e não se dão
conta que a memória nacionalista está mais viva do que nunca e retomará o
protagonismo de sempre na busca de justiça social e liberdade.
Estão aí a Escócia, o Curdistão e a Catalunha a
provarem quão presente é o nacionalismo quando a opressão e a tirania
se impõem sobre um povo, colocando em risco sua identidade nacional, sua
cultura, língua, riquezas, patrimônio e seu bem-estar social. Nada,
nenhuma força no mundo consegue oprimir e dominar um povo em busca de
sua nação e de seu destino.
José Dirceu de Oliveira e Silva
Ex-ministro chefe da casa civil